quinta-feira, 29 de maio de 2008

Bem Demente


A luta do cinema experimental contra o sistema Hollywoodiano, o contraponto do cinema de vanguarda e o estilo pré-determinado do cinema comercial, são alguns dos tópicos abordados no filme Cecil B Demente (Cecil B. DeMented, EUA, França, 2000). Ser contra o sistema (“Be demented!”) ou amar o blockbuster? Não há meio termo para o personagem principal. E é à custa de muitas mortes e violência mergulhados em um humor sarcástico que esta guerra se apresenta aos poucos. Enquanto isso, como em uma obra de arte que ora choca, ora faz rir, as cores do cinema experimental vão sendo pintadas na tela, literalmente.


A comédia de humor ácido com toques de ação conta a história de um cineasta visionário e independente (Um Stephen Dorff centrado no equilíbrio entre a loucura e o idealismo) que de dia é o pacato Sinclair, gerente de um pequeno cinema, o Senator Theatre, e à noite se auto intitula Cecil B Demente. Junto com sua gang de cinéfilos fanáticos, os Sprockets Holes, seqüestram a atriz nº 1 de Hollywood, Honey (Melanie Griffith em uma atuação caricata que deixa a desejar), na noite da entrega de seu prêmio no referido cinema, para forçá-la a atuar em seu filme underground que é rodado no decorrer do filme utilizando as mais diversas situações provocadas pelo grupo.

A primeira contradição se revela: por que escolher a atriz mais famosa de Hollywood para fazer um filme experimental? Cecil B se mostra totalmente contra o sistema, porém usufrui dele para conseguir publicidade e difundir através do ato criminoso sua tese de rebeldia cinematográfica.

Como comédia é fraco, com situações repetitivas e piadas internas (daquelas que apenas conhecedores da linguagem e história do cinema ou a própria equipe consegue entender). Mas é divertido ver a transformação da personagem de Griffith de diva fútil, mimada e rica em uma verdadeira Sprocket Hole, procurada pela polícia, uma referência livre ao caso real de Patty Hearst, uma atriz que nos anos 70 foi seqüestrada por guerrilheiros e acabou participando de um assalto com eles. Das roupas luxuosas e de seus ataques de estrelismo, só resta a voz estridente, que muito contribuiu para o prêmio Framboesa de Ouro, “conquistado” pela atriz.

Esta passagem de fase vai sendo construída ao longo do filme com a variação das cores, refletidas no figurino que aos poucos vai ficando cada vez mais pesado, psicodélico e com cores vibrantes para culminar em um preto total a fim de consagrar a total loucura e violência de seus personagens. A luz da película, tão clara no início também escurece, dando um ar noir ao seu final. Recursos metalingüísticos são muito utilizados. Não só nas explicações de como se faz um filme, mas também nos próprios personagens, como quando um dos Sprocket fica “paralisado na cena”. A mudança de quadro lateral horizontal é outro recurso para enfatizar o filme falando de outro filme. Quando Honey é levada pelos policiais, a câmera lenta e a música de fundo remetem aos musicais e glamour hollywoodiano. Um contraste percebido nitidamente, já que não combina com a cena: a personagem se encontra com o cabelo queimado, má vestida e indo direto para a cadeia.

Dados psicológicos também são passíveis de detectar, como a privação ao sexo em favor ao sucesso do fazer cinematográfico, culminando às cenas de homosexualismo, sadomasoquismo para a celebração da empreitada.

O diretor merece um capítulo à parte. John Walters se transpõe para a tela disfarçado do personagem Cecil B Demente, nome escolhido após um apelido que ele próprio recebera de um crítico. O Rei do trash ou do mal gosto, título recebido a partir de Pink Flamingos (1972), passou o início de sua carreira dedicado ao cinema arte. Assim como a criatura, o criador fazia seus filmes com ajuda dos amigos cinéfilos e foi criando um estilo próprio que aos poucos foi abrindo portas e adquirindo espaço no meio cinematográfico de arte, inclusive em sessões de meia-noite, como é citado no filme como algo sublime de se defender. Com Hairspray (1988) ele desponta em Hollywood e se adapta bem ao sistema. Inclusive a refilmagem do filme (2007) mostra o quanto esta adaptação foi doce, com uma pitada de sarcasmo mas com direito aos clichês criticados em Cecil B. Seria este o futuro da personagem caso não tivesse tido “a visão” e posto fogo em si mesmo para dar gran finale ao seu filme?

Não apenas Waters está disfarçado como todos os personagens têm uma dupla personalidade. A atriz que na frente das câmeras se mostra perfeita, mas não consegue se manter equilibrada na sua vida pessoal; o integrante da gang “filhinho de papai”; Sinclair que se esconde na máscara de Cecil são alguns dos exemplos.

O filme é uma sátira ao sistema de Hollywood, mas culmina por ao mesmo tempo ir contra o cinema de guerrilha. Não chega a definir qual é sua verdadeira proposta, já que os atos dos cineastas da gang de Cecil agem absurdamente sem critérios sociais ou morais e, como poderíamos dizer em uma discussão, perdem a razão ao trocar os argumentos por violência. Vemos então um ambiente de desordem e loucura, caracterizando o cinema não Hollywoodiano como apenas louco e inconseqüente. Leva à reflexão do cinema comercial, porém, por ter os padrões de Hollywood e estar inserido no próprio contexto criticado, provoca uma crítica da crítica. Deixando dúbia sua proposta, já que seu protagonista utiliza estes recursos comerciais a seu favor, assim como seu criador John Waters.







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